Pela primeira desde
que começamos o caminho demos início à etapa sob condições climatéricas menos
favoráveis. Saímos de Samos com frio, nevoeiro e uma chuva miudinha que nos
obrigou a vestir uma camisola mais quente e um impermeável. Os 13km até Sarria
foram um verdadeiro suplício. Uma indisposição intestinal, que me obrigou a
parar por várias vezes, tornou ainda mais difícil um trilho cheio de altos e
baixos, pedras soltas e que nunca mais acabava.
O destino final
parecia mesmo ser Sarria pois não me sentia em condições para continuar a andar.
Após três horas de penosa caminhada paramos num pequeno povoado, a cerca de 4km
da vila, para tomar o pequeno-almoço, algo que deveríamos ter feito logo à
saída de Samos. Todas as jornadas devem começar com uma boa alimentação mas,
neste dia, acabamos por nos descuidar e o resultado foi um estado de extrema
fraqueza e cansaço.
Um galão quente e uma
torrada fizeram maravilhas e rapidamente me senti a recompor um pouco. Ainda assim,
chegar a Sarria foi um desafio dificilmente superado. A povoação, uma das
maiores que encontramos no território galego, não prima pela beleza e o tempo
encoberto e chuvoso, não contribuiu para melhorar o aspecto da localidade.
Calcorreamos as ruas e, com alguma dificuldade, subimos uma íngreme escadaria
que nos levou até à igreja de Santa Marinha.
Aí paramos cerca de
45m para descansar, repor forças e carimbar a credencial. Junto ao templo
encontramos duas peregrinas japonesas com quem, posteriormente, nos cruzamos em
diversas ocasiões. Depois destes momentos de repouso resolvemos arriscar e
seguir em frente, sem lugar de destino traçado. Felizmente, na Galiza, a
distância entre albergues é reduzida e por isso a nossa perspectiva era avançar
mais alguns quilómetros até o corpo aguentar.
À saída de Sarria
voltamos a parar, desta feita, para visitar o Convento da Madalena, um
monumento que alia várias correntes artísticas e que se constitui como uma das
jóias arquitectónicas do Caminho Francês. Passamos vários minutos a admirar os
claustros e a rezar no interior da igreja conventual. Por incrível que possa
parecer, depois do tormento que foi o percurso até Sarria, a seguir a esta
paragem, percorremos um dos melhores trilhos de todo o Caminho.
Poucos quilómetros à
frente do Convento da Madalena atravessamos a linha férrea, cruzamos uma bela
ponte medieval e entramos, novamente acompanhados pelo casal hispano-venezuelano,
num denso bosque de carvalhos, faias e castanheiros, sulcado por inúmeros
riachos e ribeiras. As nuvens dissiparam-se, apareceram os primeiros raios de
sol do dia e corria uma brisa suave. A caminhada tornou-se extremamente
agradável e os quilómetros fizeram-se com grande facilidade.
Saídos da floresta
percorremos o trilho entre campos de cultivo semeados de milho e prados
verdejantes onde pastavam vacas, cabras e ovelhas. As aldeias, com as suas
capelas e igrejas (a maioria de estilo românico), sucediam-se umas às outras.
As casas típicas, com varandas enfeitadas de flores, as fontes e os tanques de
água fresca, os espigueiros e os cruzeiros que bordejam a via jacobeia dão um
encanto especial a esta Galiza rural e interior.
Por volta das duas horas
da tarde despedimo-nos dos companheiros de viagem, que pernoitaram em Morgade,
e avançamos até Mirallos onde paramos para almoçar. Aí encontramos o Alexandre.
Depois de nos cruzarmos durante vários dias seguidos e termos trocado apenas
palavras de ocasião, pela primeira vez, sentamo-nos à mesma mesa a fazer uma
refeição mais demorada e entabulamos conversa. Disse-nos que vinha da zona de
Florianápolis e que iria estar pouco mais de um mês na Europa. Após chegar a
Santiago, tencionava conhecer Braga, Porto, Fátima e Lisboa. Era uma curiosa
personagem: um militar peregrino, devoto de Nossa Senhora Aparecida e que
caminhava quase sempre com um terço na mão.
Depois da almoçarada
e como já estava a ficar tarde, decidimos não terminar o dia em Portomarín que,
segundo os guias do peregrino, seria o ponto de chegada para a etapa. Tinham-nos
também informado que o albergue dessa localidade já estava bastante
congestionado de caminhantes e que não seria fácil encontrar local para
pernoitar. Por isso mesmo, fizemos apenas mais 4km até ao albergue do
Mercadoiro. Aí despedimo-nos do Alexandre que, em solitário, seguiu até à vila
situada nas margens do rio Minho.
O albergue do
Mercadoiro foi uma muito agradável surpresa. Instalado numa casa típica, à
beira de um trilho de lajes ladeado por frondosas árvores, todo ele exala
rusticidade. Muito limpo, bem cuidado e com excelentes condições de alojamento,
resulta de um projecto de dois jovens valencianos que resolveram instalar-se
nos confins da Galiza. O jardim com espreguiçadeira, camas de rede e um enorme
relvado é ideal para descansar após uma longas etapa.
Partilhamos um quarto
de oito beliches com outros peregrinos portugueses, dois irmãos de Braga, que
também já eram veteranos das caminhadas até Santiago. Grande luxo foi o facto
de podermos lavar a roupa à máquina. Enfiamos lá para dentro tudo o que
podíamos pois não sabíamos se haveria outra oportunidade de o fazer novamente
antes de chegar a Santiago. Roupa que durante os dias anteriores foi lavada com
sabão azul em lavatórios e chuveiros e seca nos atilhos da mochila teve, pela
primeira vez desde o início do Caminho, um tratamento mais digno, com direito a
detergente, amaciador e um enorme estendal.
Rente à noite, fomos
ao pequeno restaurante do albergue onde nos foi servido um saboroso chuletón. Parece
que em vez de uma peregrinação religiosa estávamos a fazer um roteiro
gastronómico, mas o que havemos de fazer? Há que aproveitar a boa comida e devo
confessar que, no geral, comemos muito bem, algo que não estava minimamente à
espera.
Depois da ceia,
aproveitamos a noite amena e espectacular para ficar mais um pouco no relvado
do jardim a admirar o céu estrelado de Agosto. Seria imperdoável não o fazer
tendo em consideração a própria Via Láctea tem a designação de Caminho de
Santiago. Foi o epílogo perfeito para uma jornada que, pela manhã, se revelou
um verdadeiro tormento. Durante as primeiras horas de caminhada pensamos que
nem os 13km até Sarria conseguiríamos fazer. No final do dia acabamos por
contabilizar mais 30km nas pernas e desfrutamos de um dos troços mais aprazíveis
do Caminho.